sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Diário de bordo: férias no Brasil


Voltei galera. Foram curtinhas, sim, mas esses dias foram bastante intensos: comi muito camarão, adquiri novos traumas, tomei sol (com protetor), vi muito homem sarado na praia... Posso dizer que tudo foi muito bom, muito legal, principalmente, claro, se esquivo as más recordações. É gente, pelejei bastante nesse início de 2010. E como a gente sempre conta as coisas ruins primeiro, seguirei essa regrinha.

A ida.
Após enfrentar 18 horas de busão, cheguei na cidade das cataratas. E se lá tem a garganta do diabo, acho que aquela rodoviária é o coração dele. Um mundaréu pulsante de sacoleiros ocupavam toda a extensão do local com suas sacolas imensas, parecendo até que estavam trazendo o Paraguai por partes. Ciudad de Leste por exemplo, estava esquartejada na sacolona de plástico que uma dona obesa e suada arrastava inultilmente, enquanto na outra mão equilibrava seu pastel de carne e coca. E como se não bastasse esse inferno, a cidade estava em chamas com seus 38 graus e 1000 de sensação términa. Sinceramente, gostaria de bater um papo com o secretário de turismo daquela cidade. Um ar condicionado naquela rodoviária não seria um luxo. Estamos falando de uma rodoviária internacional, de grande fluxo humano e seus odores e a grana que os gringos deixam ali não é desculpa para dizer "não temos verba".

Tudo bem, estava de muito mau humor, consequência de 18 horas de viagem, calor, idioma diferente. Eu estava afetada, mas a minha história poderia ter sido diferente. Pensem vocês: eu chegando em Foz depois de horas de viagem e ao invés de suar feito porco na ceia de natal, me depararia com um ar fresco, sem crianças chorando por estarem irritadas com a alta temperatura, sem sentir o cheiro de sovaco alheio; me sentiria mais humana, longe do pensamento de estar participando de algum tipo de catástrofe humana, esperando tranquilamente o meu ônibus para Guarapuava. Completamente recomposta, chegaria sorridente para os meus queridos, sem verbalizar palavras de baixo nível, vociferando contra a família o fato de morarem no cu do mundo. Sem ar condicionado, escapei para a única lanchonete da rodoviária (exato, só tem um lugar para comer). Enfrentei fila, o lugar só tinha um ventilador ligado, respirei fundo e parti pro lado bom da coisa, comer. Me empanturrei com uma coxinha seca de frango e um suco de laranja. Não há mau humor que se cure quando se está com a barriga cheia.

A volta.
A minha volta a Buenos Aires foi pior, muito pior do que eu poderia prever. Nem um escritor de novela mexicana poderia ser tão audaz quanto aos fatos que logo descreverei. Foi duro deixar a minha família depois de dias tão prazerosos. E o que aconteceu realmente foi um trauma. Sem mais rodeios, vamos aos fatos.

Graças às chuvas que alagaram São Paulo, que é graças ao fenômeno climático "El Niño", decorrente graças aos gases invernadeiros na atmosfera, graças à inconsiência da população mundial e principalmente da estupidez dos governantes deste planeta, meu busão de Guarapuava à Foz estava atrasado. Atrasadíssimo. O cara de peixe morto da Tristeza dos Campos (fazendo alusão à empresa de ônibus Princesa dos Campos) me disse com pouco caso "ai moça, você não consegue chegar em Foz às 14h não. O carro está encurralado lá em São Paulo e não tem outra empresa que faça esse trajeto". Maldito monopólio, pensei. Era a única empresa que me poderia enfiar naquele inferno de cidade. Com mala e travesseiro nas mãos, voltei para a casa da minha irmã, com a promessa de que me levariam a Cascavel na manhã seguinte, de carro. Para comemorar o evento, usei o dinheiro que me devolveram da passagem para torrar com x-saladas e fazer uma vigília com filmes brasileiros recém lançados.

Começamos por O Divã, legalzinho e terminamos com a Mulher Invisível. Temida pelo filme ser estreado pela Luava Piovani, fui dormir sem terminar a película. Antes mesmo do galo afiar suas cordas vocais, caímos na estrada rumo a Cascavel. Tempo horrível, as nuvens negras no céu eram ameaçadoras, como que avisando o que me esperava  pela frente.

Em Cascavel uma surpresa: os ônibus estavam atrasados e desta vez não eram pelas chuvas de São Paulo. O senhor que me atendeu, muito simpático por sinal, pouco soube me informar o motivo do problemão que acabava de me atirar pela janelinha de vidro. Com toda a boa vontade do mundo, meus cunhados e minha sobrinha Julia partiram comigo para o calderão do diabo: Foz.

Não é exagero, sentia meu espírito suado e pegajoso. Chegamos cansados e famintos, destruídos e apurados. Comi mais um quilo de coxinha com suco para aguentar as 18 horas de retorno. Minha sobrinha, com seus apenas um ano e seis meses estava inquieta, cagante e chorante. Minha irmã fatalmente se contorcia de cólica e meu cunhado cozinhava na sua calça de jeans grosso e camisa pólo. Bem, havíamos corrido bastante e faltavam apenas 30 minutos para me meter no ônibus e au revoir. Fiquei até aliviada ao ver o ônibus laranja ofuscante do Crucero del Norte, mas uma voz feminita me orienta "moça, esse vem do Rio, o seu vem de São Paulo". As últimas palavras causaram-me um certo calafrio e um mau pressentimento. Olhei a baixinha esmilinguida dona daquela voz que minutos antes havia dito "São Paulo" e perguntei "quanto tempo de atraso?", "meia hora", disse a mocinha que parecia ter um pão enfiado na boca, tamanha era a sua voz esgarniçada. De repente, quase que ao mesmo tempo, vejo os dois ônibus da Tristeza - sim, o mesmo que eu havia tentado tomar em Guarapuava e Cascavel, chegando antes mesmo do que aquele que eu tomaria para Buenos Aires. Uma piada de muito mal gosto, fala sério. "Ah?" "Nada não minha senhora, sou eu pensando em voz alta", comentei com uma idosa que cuspia em mim enquanto falava.
Estava com dor na consciência, puxa. Fiz minha irmã viajar quase 500 km para nada! Respirei fundo, tentei jogar o jogo do contente de Polianna e a ideia de ainda estar com a minha familia me consolou.

Acontece que meu ônibus não vinha, e já não eram 14:30 e sim quase 16h. Nós não éramos mais seres humanos e sim um monte de carne disforme em putrefação, fedentos, cansados e à beira do desespero. Ameaçando a tirar a tapas o pão da boca da baixinha esmilinguida, fui expelir os meus demônios. "Puta que pariu moça, tô esperando há quase 2 horas e nada dessa merda de ônibus". Como se as próximas palavras fossem dar algum trunfo, a voz esgarniçada me disse com a maior indiferença "acabaram de nos informar que o ônibus chegará apenas às 19h". O meu cérebro insolado só pensava em dar "porrada, porrada", mas tudo o que consegui fazer foi chorar, chorar e pedir o meu dinheiro de volta. Queria sumir dali, voltar para Guarapuava, esquecer que a Argentina existia. Queria me alistar em alguma facção terrorista e dedicar-me a destruir empresas de ônibus que não atendem bem aos seus clientes. "Moça, você vai se arrepender, nessa época no ano é difícil encontrar passagem em cima da hora"."Me arrepender? Ahhh, sua biscatinha, quem vai se arrepender é você! Vou processar essa porra de empresa e você vai voltar pro buraco de onde saiu".
É claro que era meu cérebro insolado falando comigo. Estava tão mal que só queria o meu dinheiro e evaporar dali.

Fomos rumo à fronteira com a Argentina. Lá, pensei eu, teria mais opção de horários e empresas. Após 40 minutos fritando na fila de carros, fomos barrados porque a Julia não tinha RG. Só certidão de nascimento. A pobrezinha que dormia candidamente teve de ser acordada e aos prantos foi com a minha irmã numa sala horrenda do setor migratório argentino. Pelo menos eles tinham ar condicionado. Cunhadinho e eu atravessamos a fronteira e obviamente não havia passagem, "semana que vem", "talvez amanhã liberam um carro extra". Nesse momento, vejo o ônibus que ia para Buenos Aires, o mesmo que estava encalhado em São Paulo, aquele mesmíssimo que chegaria às 19h, estava bem na nossa frente, em marcha lenta rumo à terra prometida. E ainda eram 17:30. Surtei, lógico que comecei a chorar, xingar meio mundo e acabou sobrando para o Luis, que me atendeu do outro lad com um alô cheio de amor para dar. "Alô uma ova seu calhorda! Tudo isso aqui é culpa sua. Eu devia estar no Uruguai, em Punta del Leste, se não fosse o seu cachorro ter um tumor no cu. A culpa é sua sim seu patife, o país é seu, a empresa que ia viajar é do seu país, que aliás odeio, odeio tudo isso aqui, não volto nunca mais, tá me ouvindo?". Estava, como sempre estava ouvindo os berros histéricos da namorada descontrolada, que depois de vociferar como cão raivoso, voltaria à sessão de choros e soluços.
Para resumir o que aconteceu nas próximas horas, digo que acabei ficando num hotel em Puerto Iguazu e na manhã seguinte deveria tomar um voo com destino a Buenos Aires.

O hotel era bem fofo, com um jardim arborizado, uma piscina cheia de jovens europeus ao seu redor. Todos pareciam felizes e eu estava tão triste, cansada, aniquilada. Não achava justo minhas férias terminarem de forma tão sem sentido. A imagem da minha irmã e a Julia naquela sala de migrações doeram. Elas não mereciam passar por aquilo. Fui dormir bem cedo, chorando e ligando para o Luis para continuar a xingá-lo até dormir. Fechei os olhos para esquecer aquele pesadelo e me preparar para um novo: o meu medo de voar.

Tive febre. Meu sono foi perturbado inúmeras vezes pela dor no corpo e frio. Acordei de madrugada, fui para debaixo de uma árvore esperar pelos primeiros raios de sol. Não apareceram muito evidentes, pois o dia era de chuva. Vai ser cagada assim lá na puta que pariu Michele!, pensei.

No aeroporto conheço uma paraguaia simpática. Me tomava a febre, me distraia com seu vocabulário guarani, meu ânimo começava a reagir. Mas durou pouco, porque a migração argentina se enquasquetou com a moça e a levou sabe deus pra onde.

Dentro do avião, uma senhora de nariz tremendamente vermelho e inchado sentou ao meu lado. Eu estava na janela. Seu nariz atraía meus olhos instintivamente e eu pensei que ela estava com leishmaniose. A viagem começou mal. Voamos como se estivéssemos num tobogã. Havia muitos poços de ar, tempestade, um voo completamente desagradável, combinando com perfeição o que eu já tinha vivido dia antes. Colocaram Bolero de Ravel para tranquilizar os passageiros e é claro que não funcionou. Piorou. A mulher nariguda estava nervosa, com medo. Me explicou que teve uma reação alérgica do sol no meio das cataratas, por isso tinha aquela bola carne viva acima da boca. Com essa explicação pude ficar mais tranquila, pois o nariz me preocupava mais que o sobe-desce do avião.

Eu estava entre gente de toda nacionalidade. Atrás de mim haviam japoneses, na frente americanos, do outro lado franceses. Acho que argentinos mesmo, só os que estavam ao meu lado. O marido da senhora com alergia no nariz tentava tranquilizá-la e juntos fazíamos piadas. "O que o piloto nos dirá se o avião cair?", perguntou o marido. "Atenção senhores pasageiros, informamos que estamos todos fudidos e que vamos morrer. Não aproveitem a situação para roubar a comida e bebida da primeira classe. Vandalismo está proibido neste avião e a LAN agradece por viajar conosco", eu sugeri tentando conter o meu sarcasmo. A viagem, mesmo no seu triste contexto, ficou descontraída. Chegaram alguns alfajores Havana e até pude perceber o gatíssimo comissário de bordo que me servia. O problema é que logo vi que ele era viado. Nenhum homem vai dizer que adorou o babado do seu vestido e que na europa se usa muito aquele modelo (obrigada irmãzinha por emprestar seu vestidinho xadrez com babado). De repente, o avião perde altitude, o povo grita, a mochila dos franceses caem em cima de um casal que penso eu serem coreanos, a nariguda aperta a minha mão e eu tenho um ataque de riso.

O que aconteceu depois vem numa sequência sem ordem, embaralhada. O comissário bonitinho viado pedia que as pessoas me dessem passo, queriam me deitar no chão do avião. No chão do avião por quê? O casal ao meu lado seguravam vários saquinhos de vomitar e me diziam alguma coisa que eu não conseguia escutar. Os japoneses pareciam ter aumentado os seus olhos, caralho, tá todo mundo olhando para mim! O que é isso que estão jogando em mim? Champagne? Esse viadinho gostosinho é um pervertido, safado. O que ele quer fazer comigo ali na frente de todos? Mas peraí, eu acho que eu ainda tenho um namorado...
Epa, o que estou fazendo só de sutiã com o vestido dobrado até à cintura cobrindo as pernas? Escuro, via tudo preto. Não! Meu sutiã não combina com a calcinha e acho que a virilha está meio peluda. Porra, o que está acontecendo aqui? Eu estava tremendo, ensopada de tanto suar. Será que voltei para Foz? Ou a paraguaia simpática me deu alguma droga? Estava tudo agitado e lento ao mesmo tempo...Vômito, muito vômito. "Pobrecita, necesita aire!", gritava a senhora alérgica ao sol. Uma dor de cabeça, ruído infernal, dor, muita dor no corpo. Estou tremendo, minha pele queima! Queria chorar mas também queria manter a pouca dignidade que me sobrava. Tá todo mundo olhando que tenho barriga. Eu vou morrer....

Aeroparque: Buenos Aires. O viadinho lindo está no banheiro comigo me limpando. Já havíamos pousado e ninguém podia descer até eu descer. Havia passado uns 40 minutos desde a minha crise de sabe-lá-o-quê. Estávamos esperando uma cadeira de rodas. Para mim? Não senhor, vou descer com as minhas pernas. Eu não conseguia falar e ainda tremia muito, me sentia muito frágil, sem forças. Chega uma aeromoça impecavelmente maquiada com a minha mochila. Apontei para a minha bolsa preta Prüne e indiquei que me dessem o meu celular. Liguei para o Luis, balbuciei alguma coisa, tentei dizer que me sentia ótima, mas o moço bonito não acreditou muito, me ajudou a levantar e fui rumo às escadas. "Moça, você ainda não está recuperada, espere a cadeira de rodas, lá em baixo tem um médico te esperando". Cadeira de rodas, médico? Amanhã preciso estar no escritório querido. "Obrigada, posso caminhar sozinha, me sinto bem", foi a primeira frase que consegui dizer, embora o gosto de vômito que tinha na boca me dava vontade de seguir vomitando. Eu estava confusa, com medo e só queria desder daquele lugar, nem que fosse rolando escada abaixo. Ainda o escutei perguntar se eu tinha ficado com medo do voo. Medo de quê? Voar? Já voei outras vezes. "Não, deve ter sido a aspirina, a febre, sei lá". Deixei o pássaro de lata para trás e vi o rostinho preocupado do Luis me esperando junto com os seguranças.

Abracei o meu homem e chorei. Não conseguia falar. Veio um moço bem trajado perguntar se me chamava o médico. A médica veio e disse que devia ser pela onda de calor que fazia na cidade. Mas se eu estava dentro do avião, que calor minha senhora? Não importa, fui pra casa nos braços do meu amor de taxi, com uma motorista sapatão que falava pelos cotovelos. Deixei para trás a praia, a família, os percalsos do dia anterior, tudo. Só queria chegar em casa para desmaiar como deus manda.

E a parte boa da viagem?
Com a minha família na praia, camarão e peixe fresco todo dia na mesa, gente bonita, festa e dias de sol, não há muito o que dizer. Estava muito feliz por ver a Julia tomar o seu primeiro banho de mar, ganhar seus beijinhos, abracinhos. As rizadas nas noites de buraco com a minha irmã e o meu cunhado, que saudade! Desfrutei muito das caminhadas matinais com a minha mãe, dos nossos papo-cabeça, do jeitinho calmo e desafiante dela. Realmente, foi tudo muito maravilhoso e não me arrependo de ter ido ao Brasil ao invés do Uruguai.

Só isso? Sim gente, só isso. Aprendam que faz parte do ser humano recordar mais as coisas ruins do que as boas. E aqui não será exceção.


Música que me acompanhou nesta triste volta

4 comentários:

  1. choquei....mas devo confessar que adorei imaginar vc puta d riava nas rodoviarias se empanturrando de coxinha e suco,ah sem falar imaginar no estado q estav no busao....

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  2. Edinho, meu amor, que saudades e que delícia saber que você lê o meu blog.
    Beijo gigante!

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  3. Perdi o posto de dona das viagens mais trágicas. Foi mal, mas tive de rir. E muito.

    Que venham outras férias!

    Bjooo

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  4. Oi Mi,
    É a primeira vez que acesso o seu blog, adorei! Dei muitas risadas, com certeza visitarei mais vezes.
    Grande Beijo... Saudades...

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